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Desenho: Dudu GuimaS - Colorido: Roberta GuimaS |
Não
ventava. As árvores pareciam promover entre si um breve desafio. Ai da folha
que ousasse se precipitar e pusesse tudo água abaixo; embora água ali não
houvesse. Ao menos, nesta história seca, não foram encontrados registros que
levassem a uma interpretação literal da imagem criada. E, à pertinente ideia de
levar tudo ao pé da letra, esclareço que o registro citado tampouco tem relação
com a chave que regula a passagem de um fluido. Muito pelo contrário. Nem água,
nem vento. As copas das árvores permaneciam imóveis. E, mesmo paralisadas,
havia certo ar de apreensão entre elas, que se conservavam vigilantes, a espera
do descuido alheio para enfim apontarem o ato em falso do vizinho e assim
eliminarem progressivamente uma a outra até a definição da finalista.
Nada
de inusitado neste cenário em que árvores brincam de estátua para vencer o
tédio da ausência de vento. O tédio, diga-se de passagem, é algo pavoroso, não
o desejo a nenhum ser, animal ou vegetal. A falta de vontade, a apatia, a
incapacidade de tornar interessante o cotidiano são uma daquelas pestes que
causam profunda aversão e verdadeiro pânico. Portanto não me espanto em ver
duas Amendoeiras, uma Mangueira, uma Figueira e um Salgueiro-chorão brincando
de estátua. Era uma das minhas brincadeiras preferidas na infância. Talvez
porque ganhasse quase sempre dos meus amigos. Aliás, meu egoísmo infantil não
me permitia aceitar a relutância do Cachoeira em brincar. Certamente também
criaria alguma resistência se fosse eliminado amiúde de forma precoce. Faz
sentido.
Como
faz muito sentido esse apelido: Cachoeira. Reza a lenda que o pobre foi chamado
pela primeira vez deste nome no dia em que entrou pela porta de vidro de uma loja
de brinquedos. Assim como dez entre dez meninos de onze anos, o Cachoeira era
louco pelo "Pegasus", o carro de controle-remoto mais sensacional dos
anos 80. Quando bateu o olho e viu a caixa estampando aquela máquina prateada
com rodas de liga-leve, não pensou duas vezes, foi sedento ao encontro do
brinquedo com a sanha de revelar à mãe sua primeira e única opção de presente
de Natal. Dizem que a transparência da porta era tamanha a ponto de iludir até
os mais atentos, mas, no caso do Cachoeira, parece detalhe, o hipnotismo
momentâneo foi mesmo o ponto preponderante, fazendo o coitado passar como uma
bala pelo vidro da loja. Dispensável dizer que se cortou inteiro, era sangue da
cabeça aos pés. Daí surgiu o mais impressionante da história. Seu choro foi tão
copioso, suas lágrimas tão caudalosas, que foram descendo pela face e inundando
o corpo, lavando o sangue que jorrava por todo o lado como se o menino
estivesse mergulhado em uma tranquilizante e reparadora cachoeira.
Voltando
às árvores que permaneciam brincando inertes, percebi uma algazarra silenciosa
quando o Salgueiro-chorão foi denunciado por movimento furtivo. Eu confesso não
ter observado, mas devo dizer ainda que a lembrança do Cachoeira me tirou um
pouco a concentração da brincadeira. Entretanto não me arriscaria advogar a
favor do Salgueiro porque, segundo consta, seu último nome veio incorporar-se
por autoria da Mangueira, muito embora os estudiosos da botânica tenham uma
versão diversa. Alegam que formato alongado e fino das folhas e sua projeção
voltada para baixo emprestam um ar melancólico à árvore. Particularmente, a
história da Mangueira me parece mais fiel à realidade. O Salgueiro-chorão
ganhou esse apelido pelo simples fato de não aceitar perder na brincadeira.
Reluta, tentando convencer os demais com argumentos pouco convincentes e, ao
final, sem obter sucesso, se debulha em lágrimas até se cansar.
Deixando
de lado a manha do Salgueiro, pouco a pouco, as eliminações foram acontecendo,
instando como grande campeã da noite a Figueira que perseverou como uma estátua
fiel durante dez intermináveis minutos sem uma brisa sequer. Porém, em se
tratando de natureza, as mudanças de humor são quase sempre intempestivas. O
vento, que não dava as caras, começou chegando de mansinho, primeiro fazendo
tilintar o furín pendurado no teto da varanda. E depois trazendo como companhia
uma rajada gelada e úmida que me obrigou a encolher de frio. As árvores agora bailavam com seus diversos
braços soltos pelo ar, tremulando suas cabeleiras verdes para compensar a
ausência do movimento que não poderia provir das pernas, inertes de nascença.
Já passava das duas, melhor voltar pra cama. E que, desta vez, eu possa dormir
até de manhã.

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